sábado, 26 de março de 2011

Um Rei Gago e Um Filme Manco

O Discurso do Rei, de Tom Hooper
por Eduardo Henriques
O Discurso do Rei (2010) conta a história verídica da luta do Príncipe Albert de Hannover, filho secundogênito do Rei George V da Inglaterra, contra a gagueira. De início, vê-se a submissão infrutífera aos tratamentos mais diversos da época que buscavam soluções para a dificuldade mecânica da produção da fala. A peripécia se dá quando, por meio de uma tentativa quase desesperada de sua esposa, o Príncipe acaba nas mãos de um excêntrico australiano que o põe de frente com os seus verdadeiros medos.

                           

Biografias e adaptações literárias para a grande tela do cinema estão na moda. Em verdade, são uma tendência vindoura. No caso de O Discurso do Rei, tem-se a fusão desses dois elementos adorados pela Sétima Arte. Para escrever o roteiro do filme, David Seidler inspirou-se no livro homônimo de Mark Logue. Logue nada mais é do que o neto de Lionel Lougue – o excêntrico australiano que ensina ao Príncipe Albert a como controlar sua gagueira. Utilizando-se de vasto material epistolar, trocado entre seu avô e o Príncipe da Inglaterra, Mark descreve a relação profissional e, principalmente, a amizade construída entre o ‘Royalty” e o plebeu.
Tom Hooper, diretor do filme, deixa bem claro desde o início que os 118 minutos servirão ao propósito de revelar essa amizade que foi de magna importância para a história da Inglaterra. Um homem comum tem o mérito da oratória daquele que conduziu uma nação inteira em meio aos bombardeios à sobrevivência durante a II Guerra Mundial. O filme com um roteiro linear, e aparentemente nada de extraordinário, acaba por crescer diante do expectador devido a sua carga emocional no momento em que se adentra nos temores de um homem que deseja viver uma vida tranqüila, junto com sua esposa e filhas, todavia tudo desmorona quando precisa tornar-se Rei.
  
 Albert, em uma  atuação brilhante do ator britânico Colin Firth, vive as angústias de um homem que tem em seu âmago a necessidade de esquivar-se da atenção pública e o anseio por viver sua vida de modo pacato e invisível. Contudo, seu pai é o monarca reinante do mais importante império do século XX - o Império Britânico -, e, desde a sua tenra infância, “Bertie” – como Albert era chamado em família – viu-se deixado de lado por seu pai e por sua mãe, a Rainha Mary de Teck. Sempre à sombra de seu irmão mais velho, O Príncipe-Herdeiro Edward (Crown-Prince), ele nutria invejava pela desenvoltura para fazer amigos e conquistar as damas, bem como para ludibriar os pais e os protocolos da Corte conseguindo experiências dignas de um “bon vivent” aristocrático. Era o gosto da liberdade o que Edward soprava diante de Albert e que ele nunca teve força o suficiente para agarrar.

Contudo, é justamente essa latente diferença na natureza do caráter entre os Príncipes o que acaba por traçar o destino de uma Inglaterra à beira da guerra com um país que ameaça a ordem mundial: a Alemanha. A película de Hooper mantém viva a chama da guerra por todo o desenvolvimento da trama, porém alguns detalhes que tornam mais ácido este capítulo da história da Grã-Bretanha foram abafados. O fato de a casa reinante na Inglaterra ser a mesma a mais que mil anos esconde o fato de que a partir da Rainha Victoria todos os reis ingleses eram de sangue alemão, haja vista que o marido daquela soberana era o Príncipe Albert de Saxe-Coburgo e Gotha, um legítimo germânico. As idéias iniciais e públicas de Hitler não iam de todo contra a ideologia do Príncipe Edward, por exemplo, que via na presença judaica crescente nos domínios da coroa inglesa como algo negativo.

                          













A figura da futura Duquesa de Windsor, a americana Wallis Simpson, se revela enquanto a representação de tudo aquilo que era considerado ultrajante à Realeza Britânica. George V, que tivera ele mesmo diversas amantes, não aceita o status conferido a uma “mulher de estirpe e moral menores” – como era descrita nos salões da corte – por seu filho e herdeiro. Eis mais um ponto desfavorável na pessoa do Príncipe Edward, tanto aos olhos de seus pais e monarcas quanto aos olhos do Parlamento e da elite política à época. Na medida em que a imagem do Príncipe de Gales (título de Edward enquanto Príncipe Herdeiro) se enfraquecia a imagem do frágil Duque de York (título de Bertie) crescia aos olhos do Estado. A morte de George V e o avanço das tropas nazistas sobre a polônia acabam por criar uma situação insustentável na política inglesa que mudou a vida dos dois irmãos reais para sempre.

                                           

           

Intercalando as curtas tomadas em que os destinos da Casa Real, da Inglaterra e das fronteiras européias se viam à beira de um colapso, tomadas mais longas e embevecidas de um humor nem sempre eficiente narram a história de Logan, vivido pelo ator Geoffrey Rush, e Bertie. Permeando a relação de protagonista (Firth) e coadjuvante (Rush) entre o “Príncipe gago” e o seu instrutor de fala, tem-se a insalubre atuação de Helena Bohan-Carter dando vida aquela a quem Hitler chamou de “a mulher mais perigosa da Europa”: A Rainha-Mãe. Elizabeth Bowes-Lyon rejeitou por duas vezes o pedido de casamento do Duque de York. Não queria estar atada à vida devocional dos Palácios, a pesar de viver na corte como filha de um conde galês. Quando a fragilidade de Albert deu sinais de seu progressivo afastamento da cena pública ela lhe deu o seu sim. A ela a Ingleterra deve a sua sobrevivência. Contudo, é a um roteiro pouco criativo e à uma atuação caquética e rasa da esposa do Tim Burton a responsabilidade pela irrelevância da personagem da Princesa de humor ríspido e simpatia comedida que por oitenta anos influenciou os rumos do Trono, seja como Rainha-Consorte seja como A Rainha-Mãe.

                      


Sem maiores explicações ou dados histórico-culturais, Hooper chega à necessidade moral da renuncia de Edward XVIII, rei por morte de George V, para contrair núpcias com Wallis Simpson – mesmo ela sendo casada e já divorciada. Pela primeira vez na história, um Monarca seria substituído ainda vivo. Várias foram as regências de Príncipes-Herdeiros quando do vislumbre da morte por seus reis, mas nunca um rei havia sido impelido a deixar o poder e repassá-lo a outro. Em um pronunciamento adornado de sentimento de dever Edward renuncia á coroa e aos ingleses, assumindo o título de Duque de Windsor e, pouco depois, deixando a Inglaterra às vias de guerra para viver nos Estados Unidos.
                
Tanto a sequência Elizabeth (1998) e Elizabeth: a era de ouro (2007), do diretor Shekar Khapur, quanto A Rainha (2006), de Stephen Frears, revelam, cada qual em seu contexto, o drama da simbologia monárquica para os ingleses. Na sequência de Khapur, vê-se a predestinação divina e a natureza gloriosa dos Príncipes em sua incontestável figura de dever para com seus reinos e de soberania absoluta para com seus países. Já no segundo, tem-se o drama de uma ideologia que não acompanhou a evolução do pensamento moderno e que se mostrou frágil ante a necessidade da mise en scène na sociedade do espetáculo, mas que redendo-se a isto teme perder sua essência e a sua relevância referencial para os seus súditos. Em O Discurso do Rei, tanto a crença no Direito Divino, vista na cena em que Logan se senta no Trono Real, na Abadia de Westminster, e um Albert ultrajado lhe reprova proclamando os mil anos de Dinastia que lhe conferem direito a sentar ali em detrimento de qualquer outro; bem como o pouco tato dessa Dinastia para as mudanças que a sociedade extra-palaciana lhe imprime, como no discurso de George V acerca da precisão de Bertie em falar à Nação por meio do rádio em substituição as marchas da Cavalaria Real que impunham respeito e conclamavam a dignidade do povo inglês para com os seus soberanos.

Mesmo podendo culminar em uma infinidade de “clímax” e arrojar um desfecho elegante, mas também perspicaz dentro das possibilidades de uma história verídica, Tom Hooper optar por um fim pouco inventivo. Albert tem, de fato, sua vida tragada pelas obrigações do ofício real e muda-se imediatamente para o Palácio de Buckinghan. A cerimônia da coroação é substituída por uma edição do vídeo oficial da mesma que trás, no final, uma espécie de reportagem sobre o aparato militar e os avanços nazistas no continente. O Primeiro-Ministro abdica e a figura do Rei ascende no imaginário popular como aquele que não permitirá que a nação seja invadida. Entrar em guerra com a Alemanha era inevitável. E conclamando todos os seus súditos, ao longo de todo o Império Britânico a unirem-se e terem Fé em Deus e em si mesmos, George VI, o jovem Bertie, se lança das sombras para a História.


Por Chérie *-*

5 comentários:

Iracema Carvalho disse...

Poderia dizer que gostei do filme e mesmo assim não demonstraria a medida desta inclinação pela película.Para dimensionar o meu aprazer portanto, confesso, assisti "O Discurso" por duas vezes. Concordo que ...o roteiro é pouco criativo ...o filme teve como propósito revelar a amizade como fator importante e ...que teve um fim pouco inventivo.Li com prazer o post onde fatos e referencias históricas só enriquece o leitor de forma plena. Estigma que é referência do autor.

Yoshi \o/

Andréa Carvalho disse...

Edu,
Admiro bastante seu trabalho de pesquisa tão profunda. O fato de ter uma pontuação alemã no reinado da Inglaterra me surpreendeu, mas acredito que mostrar isso no filme já seria uma ramificação que geraria outro tipo de discussão, não? Seria, por exemplo, uma "fuga ao tema", já que o foco mesmo era em Albert. Quanto à atuação de Helena Bohan-Carter, se a rainha era de humor ríspido e simpatia comedida, então ela foi muito infeliz ou o Tom Hooper quis mostrar um lado mais sensível dela para que isso acompanhasse o desenvolver do personagem, existindo ou não. O final achei interessante, Edu...Achei triunfante, por que você não gostou?

Adorei o post e mais uma vez, parabéns pela pesquisa. #meDeixaEmDepressão

Beijo

E Deus Criou... disse...

Iracema e Déa,

Talvez meu post tenha passado uma imagem pouco acertada da minha opinião acerca do filme. Eu ADOREI "O Discurso do Rei". Em geral, boas atuações, resgate histórico honrável, locações perfeitas...
Contudo, não acho que o filme seja mais merecedor da Estatueta do Oscar do que todos os demais concorrentes. Não nego, torcia já derrotado por "Cisne Negro". Um filme artisticamente (para não dizer cinematográficamente) superior.
Aponto, ao longo do post, as várias situacionalidades adversar ao pleno êxito do filme e acabo por permear com as informações que foram omitidas. Contudo, reitero, gosto do filme. Vi-o 4 vezes e ainda verei mais com tempo! *-*

Eu sou um viciado, néah? kk

Chérie *-*

Eduardo Henriques disse...

Muitíssimo obrigado, Insuportável Número 1 !!!

Fiquei por deveras contente em ver o seu comentário acerca da minha crítica para "O Discurso do Rei".
Não uma crítica fílmica, mas uma crítica de enredo, de contação, de ilustração de um momento ímpar da história britânica.
Eis um personagem que me fascina por sua superação, sua devoção ao Estado e seu amor à Inglaterra.

Obrigado por não deixar de prestigiar-me!

Love you!

Antonio Carlos V de O Motta disse...

O que escapa a maioria que assiste a um filme, lê um livro,vê uma foto ou mesmo olha um quadro é que o criador delas o fez para si, satisfazendo a sua busca pessoal e jamais pensando em agradar, apenas compartilhar a sua obra. Deixemos de exigir aquilo que queremos naquilo que outro queria.